O cercado
De que cor era o cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimba
no cesto trançado das coisas da avó
Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado
De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias
Onde está o tempo prometido pr’a viver, mãe
se tudo se guarda e se recolhe no tempo da espera
p’ra lá do cercado
Amargos como os frutos
Dizes-me coisas tão amargas
como os frutos…
KWANYAMA
Amado, por que voltas
com a morte nos olhos
e sem sandálias
como se um outro te habitasse
num tempo
para além
do tempo todo
Amado, onde perdeste tua língua de metal
a dos sinais e do provérbio
com o meu nome inscrito
⠀⠀⠀⠀Onde deixaste a tua voz
⠀⠀⠀⠀macia de capim e veludo
⠀⠀⠀⠀semeada de estrelas
Amado, meu amado,
o que regressou de ti
é a tua sombra
dividida ao meio
é um antes de ti
as falas amargas
como os frutos
MUKAI (6)
P’ra não morrer nos teus lábios de prata
era preciso ser pássaro e serpente
p’ra não sentir os teus lábios de prata
era preciso ser mulher e gente
p’ra não sofrer nos teus lábios de prata
era preciso ser sonho
uma cabaça fechada
P’ra não morrer dos teus lábios de prata
era preciso não ser mulher, pássaro e gente.
Mulher VIII
Que avezinha posso ser eu
agora que me cortaram as asas
Que mulherzinha posso ser eu
agora que me tiraram as tranças
Que mãe grande mãe posso ser eu
agora que me levaram os filhos
As viúvas
Devorei a carne do boi do fogo
tudo até ao fim e o coração
No entanto,
Kalunga, oh Kalunga,
como estou necessitada
como preciso de sorte.
Aqui a fome é tanta
que as mulheres devoraram a carne dos bois dos
homens
e as que eram virgens envelheceram
ninguém cumpriu os preceitos
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e agora somos viúvas da floresta
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e temos os sonhos perdidos
E o pai no princípio
tinha amarrado os peixes
e o pai no princípio
tinha soltado a chuva
a vaca voltava todos os dias
e não estava sozinha
tinha as tetas cheias
e os passarinhos.
Agora, Kalunga, oh Kalunga,
traz-nos o sossego, o sono
a gordura das rãs
os nossos ciclos de sangue
e os passarinhos.
Ana Paula Tavares. Nascida na Huíla, sul de Angola, Poeta e historiadora. tendo obtido o grau de Mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem poesia dispersa em jornais e revistas em Angola, Brasil, Portugal, Alemanha, Suécia, e Canadá. Em 1999, publicou vários estudos sobre história de Angola na Revista “Fontes & Estudos” de Luanda.
Francisco Van-Dúnem (Van) é mestre em educação artística pela University of Surrey Roehampton, Londres, em colaboração com o Instituto Superior Politécnico de Viana do Castelo (Portugal), membro fundador da União Nacional dos Artistas Plásticos e co-fundador e professor da Escola Média de Artes Plásticas em Luanda.